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sábado, 29 de maio de 2010
Edmundo, goleador e cavalheiro!
Em pé: Claudio, Dario, Creso, Wilson, Bené e Lico – Agachados: Ivan, Dico, Edmundo, Mário e Adão
publicado por Sebastião Verly
Tivemos a sorte de, nos primeiros anos na Cidade, morar em uma casa onde os vizinhos mais pareciam anjos das estórias da religião. A rua dos Coqueiros, começava com a farmácia do Zé Custódio, onde o Vicente se tornou aquele homem por quem, mais tarde, casado com Ana, pai da Marli e Raimilson, eu brincava que poria a mão no fogo por ele como marido fiel. Depois vinha a Marieta Afonso criada pela preta Angélica que quanto mais velha mais alegre e mais amiga, ajudava a cuidar das irmãs paralíticas e do Argemiro um irmão muito sisudo….. Do outro lado da rua, fazia divisa com nosso quintal a casa do Celso Nunes com a Maria do Celso, que tocavam um pequeno açougue onde as carnes secavam nos varais e, uma vez ou outra um urubu, vinha e levava uma manta que secava com aquele cheirinho de carne salgada que dava água na boca. Na frente, a Dona Menininha, de cujos filhos um ainda resta e é amigo de meu irmão. A velha e sua filha Terezinha cuidavam da mamãe e de nós como se fôssemos também seus filhos e irmãos. Na parte de cima do nosso terreno cercado com arame e bambus, ficava a casa da Neli do Geraldo Vaz, criada pelo padrinho Leopoldino, um negro velho bem conservado que também crismou o meu irmão junto com a própria Neli e passou a ser o compadre Leopoldino. A Neli merece um capitulo à parte muito especial. Ainda tinha, depois da casa da Neli, a da Jove com as filhas Tindá, a Nena, com o pezinho torto, a Santinha, aquele pedaço de mau caminho e a Mundinha que a gente brincava que era namorada do meu irmão por ser mais ou menos de sua idade.
Mas essa redação toda foi só para situar o Edmundo. Na casa ao lado, a Maria do Celso com seu sorriso ascético, quase enigmático, educava os quatro filhos: Rejane, Dico, Gustinha e o Edmundo. O mosteiro mais cheio de clausuras do Universo morreria de inveja da paz que ali reinava. No quintal, a gente raramente via os meninos. Salvo quando o primo deles, Rômulo, que as mais velhas diziam que era “o capeta em figura de gente” aparecia para brincar. Passavam horas no balanço que o Celso Nunes fizera com duas cordas de bacalhau penduradas com nós bem feitos nos galhos de uma árvore, onde se encaixava uma tábua de madeira maciça na qual a gente assentava. As meninas, Rejane e Gustinha, quando se misturavam com a gente para brincar de casinha, faziam os mais gostosos guisadinhos, assim chamávamos aquelas comidinhas feitas nas brincadeiras de quintal, e ainda nos davam colo. Era uma honra, eu sentia.
O tempo passou, minha família mudou-se para o bairro mais pobre da cidade e perdemos o contato com toda essa gente boa. Saímos do céu e entramos no purgatório. Mas como neste lugar basta a gente ter paciência para sair, um dia eu me reencontrei com o Edmundo. Maduro, sério e sereno ele recebeu-me como o novo funcionário do Banco. Lembro como se fosse hoje, aquele 9 de setembro de 1957, eu com minha a roupa passadinha pela minha mãe, calça de brim caqui, camisa feita às pressas pela minha irmã, sapato comprado no Doco por uma ninharia, um par de meias preta de algodão, cabelo cortado à Príncipe Danilo, com o barbeiro Chico Belmont, unhas cortadas com tesourinha da minha irmã, dentes bem escovadinhos, era agora um privilegiado contínuo do Bancomércio.
Edmundo, era o Procurador, terceiro cargo na hierarquia, educadamente me entregou o regulamento, mandou-me assentar na parte dos fundos do banco, ler, reler duas vezes e assinar na contra capa, dando ciência de que havia lido e de que o cumpriria. De forma natural, fez-me perguntas pertinentes para ver se eu havia entendido mesmo. Afinal, eu tinha apenas 15 anos e vinha de uma camada muito pobre e simples.
Todos os dias, ele me perguntava sobre o que fiz como um pai pergunta ao filho com amor e doçura. Comecei na Agência de Pompéu, onde era um por todos e todos por um. O Gerente, Seo Mauro, era de fora e um doce de pessoa. Tinha o hábito de reunir, uma vez por ano, todos os funcionários para um elegante jantar em sua casa. O Zé Maria Gomes que também era de fora, era outra pessoa educadíssima. O Zémaria voltara para a cidade de Formiga sua terra natal. O Edmundo ascendeu a Contador da Agência que era quem mandava e desmandava de verdade. Com o tempo, ele me confiava tarefas de mais responsabilidades e muitas vezes me fez pagar por estampilhas (selos) carimbados erradamente ou mal carimbadas. Sempre com naturalidade e doçura, dobrava, no volume encadernado, o documento com o selo a ser repetido e colocava em minha mesa para a “substituição”. Era o que poderíamos chamar de firme, duro com toda a ternura do mundo. Paguei algumas centenas de reais até que fiquei muito mais atencioso. Cada documento tinha de ser carimbado com a data da autenticação do caixa.
Durante mais de três anos eu tive lições de gestão, delicadeza, companheirismo, solidariedade e uma dose muito grande de amor pelas pessoas humanas, especialmente pelos colegas e clientes.
Saí da cidade para estudar. Voltei à minha terra natal muitas vezes e naquela agência bancária entrava da mesma forma como também freqüentava a Igreja local, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição: com plena liberdade, mas com um profundo respeito, voz baixa e gestos amáveis.
Tomamos cervejas juntos, conversamos sobre mulheres. Depois que saí de Pompéu, creio que uma ou duas vezes fomos juntos às chamadas casas de tolerância da cidade. Sempre com o maior respeito e educação. Daria uma BMW 0 km a quem me provar que já ouviu da boca do Edmundo, durante seus 50 e poucos anos de vida, uma palavra mais dura, uma grosseria, mesmo uma expressão dita em voz levantada ou com irritação.
Edmundo casou-se com uma moça linda, vinda da cidade de São Gotardo, e foram felizes até sua prematura morte, assim não mais que de repente. Contaram-me que o Armando, ou Dico para os íntimos se balou completamente com a morte do irmão caçula. Não é para menos. Pois se eu conheci um cavalheiro neste mundo foi o Edmundo.
O mais raro é que Edmundo foi um dos melhores centro-avantes do meu querido Esporte Clube Cristalino, o Verde e Branco de Pompéu. Ele era o oposto de seu famoso xará briguento que nos últimos anos andou por aí com o apelido de Animal, de forma pejorativa. Goleador por vários anos e sempre jogando com cavalheirismo. Criamos o time dos bancários e tive oportunidade de jogar ao seu lado. Deve ter cometido faltas no campo de futebol, mas tenho certeza que foram faltas técnicas, porque ele era incapaz de atingir outro atleta de forma dura. Foi meu ídolo em delicadeza e procuro incorporar seu exemplo, que marcou minha mente, meu coração e meu espírito.
2 comentários:
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Este é um artigo com a marca registrada do meu amigo Sebastião, que para os mais intimos é Tião do Gonde, um ilustre pompeano que, há muitos anos, mora em Belo Horizonte.
ResponderExcluirFui companheiro de quarto do Sebastião, na pensão da Dona Nair. quando ambos estudávamos em Belo Horizonte, no início da década de 60 e sempre o achei um filósofo. Mas só o soube um grande escritor quando, por acaso, tentando acessar o blog do Experidião, entrei, por acaso, no site metro.com onde o Verly escreve. Foi um feliz acaso. Desde então -- isso faz, já, cerca de dois meses -- passei a ler suas crônicas diariamente, o que me dá um grande prazer.
Desde o início, o que mais me impressionou em suas crônicas foi a riqueza de detalhes e a precisão das descrições. Esta é uma marca constante de suas obreas literárias. Eu tenho até mesmo lhe perguntado se ele não tem um diário desde seus tempos de criança, ao qual ele se reporta para escrever suas crônicas, pois acho, simplesmente, quase impossível alguém se lembrar de tantos detalhes, não importa há quanto tempo tenham acontecido.
Hoje, quando meu skipe tocou e atendi o meu amigo Rubinho, ele foi logo me dizendo: "Entre no blog do Experidião e veja uma coisa impressionante. Um artigo sobre o Edmundo, com uma riqueza impressionante de detalhes". Imediatamente, ainda mesmo antes de entrar no blog, veio-me à mente: É do Tião, pois só ele escreve assim!
Parabéns, meu amigo Tião, por nos brindar uma vez mais com uma peça que é uma verdadeira jóia literária, como sempre são todas as suas crônicas.
Carlos Foscolo
Estou parecendo meu amigo Rondon, que acabava de fazer um discurso, e logo depois, lembrando-se de mais um detalhe que havia omitido, subia novamente ao palanque e tomava a palavra.
ResponderExcluirPois bem, acabei de fazer meu comentário sobre este excelene artigo do meu amigo Verly, mas voltei para informar o site onde a maior parte de suas cronicas podem ser encontradas: www.metro.org.br.
Suas demais cronicas, principalmente as que se passam em Pompéu, são tão perfeitas e detalhistas e descrevem tão bem a realidade de nossa história moderna, que eu até mesmo gostaria de sugerir que fossem adotadas em nossas escolas para alguns trabalhos analíticos. Cheguei mesmo a comentar com alguns amigos que eu iria sugerir à Secretaria de Educação de Pompéu, Maria Haidée, que também é sua prima, uma maior atenção das escolas para as cronicas do Sebastião Verly.