quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Prova pericial elucida casos obscuros aos olhos da polícia


“A história estava escrita nas paredes.” Foi assim que o perito criminal Osvaldo Negrini Neto, hoje aposentado, descreveu a atuação da perícia no massacre do Carandiru. Em uma sexta-feira, 2 de outubro de 1992, na casa de detenção de São Paulo, a Polícia Militar de São Paulo conteve uma rebelião de presidiários. A intervenção militar resultou na morte de 111 detentos.

A inspeção da perícia criminal, logo que a cena do crime é descoberta, é fundamental. Tão importante quanto é a preservação do cenário. No massacre do Carandiru, quando Negrini foi chamado para comparecer ao local, a primeira dificuldade que encontrou foi a resistência dos policiais que lá estavam, que não queriam que o perito tivesse acesso ao local do crime. “Eles diziam que o local estava contaminado, destruído demais e que não havia condições de realizar a perícia. Lembro-me de pensar que, se não fizéssemos naquela hora, nunca descobriríamos o que de fato aconteceu naquele pavilhão”, contou Negrini. “Tivemos, depois de muita insistência, acesso ao corredor. Não havia luz elétrica, então não conseguimos ver muita coisa. Mas conseguimos ver as marcas de balas. Estava tudo lá. Buracos nas paredes, próximo ao chão, evidenciavam que os tiros eram disparados contra pessoas acuadas, em situação indefesa.” A perícia encontrou mais de 580 balas alojadas nas paredes, no chão do presídio e dentro dos corpos das vítimas. Somente 280 delas estavam no interior dos cadáveres. 

  O relato de Negrini deu abertura ao seminário Perícia Criminal e Justiça, promovido pelo Sindicato dos Peritos Oficiais da Área Criminal do Estado do Rio Grande do Sul (Acrigs) e pela Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Estado (Ajuris). Para o presidente da Acrigs, Eduardo Lima Silva, é importante que uma aproximação entre o âmbito da perícia criminal e o Judiciário seja estimulada. “O laudo pericial permanece desde o começo até o julgamento de uma ação. É o único documento que vale por todo o processo, por isso, um estreitamento entre os profissionais é bem-vindo.”

O juiz da Vara de Execuções Criminais da Capital, Sidinei Brzuska, reiterou a importância do trabalho do perito criminal e trouxe o exemplo para o caso do Presídio Central de Porto Alegre (PCPA). Desde 2008, Brzuska acompanha a situação das casas penitenciárias do município. A lei exige que sejam realizados relatórios mensais de inspetores para evitar que casos de desrespeito aos direitos humanos e crimes ocorram dentro dos presídios. Nestes seis anos, Brzuska registrou mais de 300 mortes de prisioneiros do PCPA ou de detentos oriundos de lá que foram transferidos ou encaminhados a outras penitenciárias. De acordo com o juiz, somente um dentre tantos casos que ele acompanhou resultou em processo criminal. “Eu chegava às terças-feiras para fazer a inspeção e ficava sabendo de crimes que aconteciam em outros presídios. No foro, ninguém ficava sabendo disso. Quando descobríamos, geralmente, era muito tempo depois. Assim, eu passei a acompanhar por conta. Pedia que me ligassem quando corpos fossem encontrados para que pudesse, pelo menos, fotografá-los. No primeiro dia após o combinado, recebi quatro ligações de casas diferentes”, relatou.

A partir daí, Brzuska passou a insistir na realização de perícias criminais. Várias das mortes registradas por ele foram arquivadas como “morte natural”. As fotos feitas por ele, embora não sejam perícias propriamente ditas, servem para que pelo menos ele, que fiscaliza o presídio no mínimo uma vez por mês, não seja enganado. “É muito difícil conseguir prova testemunhal deste tipo de crime. A única prova acaba sendo a pericial”, elucidou. Com a ausência de perícias, era fácil encobrir os delitos ocorridos no Central. Sem uma perícia detalhada na Casa de Detenção de São Paulo, talvez os 73 policiais militares condenados, em 2014, por 73 homicídios estivessem, hoje, em liberdade. 


Trabalho foi fundamental na elucidação do incêndio na Kiss

A perícia acaba sendo fundamental, também, para desvendar e explicar tragédias. Quando houve o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, nenhuma explicação lógica parecia fazer sentido. Não havia precedentes de um incêndio ter matado 242 pessoas. O trabalho dos peritos, portanto, foi de extrema importância para identificar as causas do que provocou o fogo.

O perito criminal Rodrigo Harsteln, responsável pela perícia da boate, explicou que nem mesmo os especialistas sabiam como proceder naquela ocasião. “Isso nunca tinha acontecido. Tivemos que criar uma metodologia nova, diferenciada das demais”, narrou. “A perícia de incêndio está acostumada a identificar a causa, como, onde e quem começou as chamas. No caso Kiss, fizemos um levantamento aprofundado. Quando há poucas mortes, é mais fácil determinar o que houve.”

Na época, foram denunciadas diversas anormalidades encontradas na casa noturna, inclusive a própria planta do local. Portas irregulares, ausência de duas saídas de emergência, barras no meio do caminho de saída. O perito confirmou o que foi divulgado pela mídia e relatado pelos sobreviventes da tragédia: a Kiss era um labirinto. 

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