Um documento oficial não deixa dúvidas: acuados por bandos numerosos e bem armados, policiais de UPPs têm ordem expressa para evitar confrontos em favelas do Rio
Leslie Leitão
SEM AÇÃO - Policiamento de resultado: a cracolândia que ninguém incomoda (Marcelo Regua)
O timbre faz referência, por ordem de importância, ao governo do estado, à Secretaria de Segurança, à Polícia Militar e à Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Arará/Mandela. Data de 16 de julho de 2014. Assunto: “Alteração no serviço”. A autoria é do comandante da UPP, capitão Paulo Cesar de Oliveira Ramos Filho, com carimbo de recebimento do supervisor do dia, sargento Rodrigo de Andrade Pellegrini. O texto, em português claudicante, é um choque: “Este comandante informa este supervisor que determine as Guarnições para não realização de Patrulhamentos noturno no interior das comunidades Arará e Mandela”. Soa absurdo, mas é isso mesmo, leitor: segundo o comunicado interno a que VEJA teve acesso, a tropa da UPP instalada para anular o poder do tráfico e garantir a ordem em duas das mais conflagradas favelas do Complexo de Manguinhos, na porta de entrada do Rio de Janeiro, tem ordem expressa para não trabalhar à noite. O documento sela por escrito algo já bem visível e conhecido nas principais UPPs: em número reduzido, com fraco poder de fogo e a desvantagem de não dominar a geografia do emaranhado de becos e vielas, os PMs buscam evitar o confronto com a bandidagem, que voltou a circular fortemente armada.
VEJA ouviu relatos de policiais lotados em UPPs que confirmam a prática da vista grossa em grandes favelas da cidade. O recuo se presta ao duplo objetivo de preservar a tropa e refrear os conflitos que vinham fazendo o medo transbordar dos morros para o asfalto, inclusive na rota turística. Durante a Copa do Mundo, os soldados do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da PM receberam instruções claras para não pôr os pés em lugares mais remotos do Complexo do Alemão, onde a gangue local fica entocada e tem força para fazer disseminar o crime pela cidade. “Quando rodamos o morro, o risco de haver uma troca de tiros aumenta. Então, o melhor é ficar parado mesmo. Isso evita que mais pessoas se machuquem”, diz um cabo lotado na região. Os números confirmam a desfaçatez cada vez mais aberta do tráfico, que avança sob a inépcia policial. Apenas nestes sete meses de 2014, cinco PMs morreram e 44 foram feridos a bala por bandidos em favelas com UPP — em todos os outros anos do programa somados, foram oito mortos e 39 feridos.
Quanto mais a polícia se preserva, mais os criminosos se sentem à vontade para retomar territórios que as 38 UPPs inauguradas desde 2008 anunciam como pacificados. No Complexo de Manguinhos, os marginais que não arredaram pé de lá atearam fogo em cinco bases policiais em março passado, ferindo o comandante. Na Rocinha, em dezembro, PMs foram agredidos a tijoladas depois de prenderem um suspeito. Não só os traficantes, aliás, agem com acinte. Na cracolândia colada ao Complexo de Manguinhos, centenas de viciados perambulam a qualquer hora do dia e da noite, em uma área cercada de UPPs e a apenas 200 metros da Cidade da Polícia Civil, um complexo de delegacias, sem que ninguém os incomode. “Estamos sempre em menor número. Vamos fazer o quê? A gente vai convivendo com a realidade, fingindo que nada acontece”, diz um policial baseado em uma das entradas da favela. Sem um bom reforço na tropa e o cerco implacável aos marginais, as UPPs, saudadas como o derradeiro capítulo de décadas de reinado do crime no Rio, correm o risco de entrar para o rol das siglas vistosas que fizeram água.
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