domingo, 13 de fevereiro de 2011

A policia deve ou não usar força letal contra criminosos em fuga?


Por José Cirilo de Vargas.

Estimado Amigo e companheiro Dr. Experidião,
animado pelo título de penalista, que o Sr. generosamente me concede, sem que nunca tenha eu feito por merecer a distinção, criei coragem para retomar o assunto publicado hoje, sobre o disparo de arma contra pessoa em fuga.
O assunto ensejou largas disputas científicas para além dos Alpes, na Alemanha, onde se buscam as fontes mais limpas da ciência penal. Permita-me o Sr breve digressão exclusivamente jurídica. Como é sabido, a Alemanha, ao perder a segunda guerra, foi dividida em quatro zonas de ocupação, quais sejam: soviética, americana, inglesa e francesa.Na zona de influência soviética foi constituída uma república, dita comunista, ou oriental, ou seu nome verdadeiro RDA (República Democrática Alemã).
Nas três outras zonas  (inglesa, americana e francesa) fundou-se a República Federal, ou Alemanha Ocidental, ou o nome que o leitor lhe queira dar (o correto é Bundesrepublik
Deutschland). O País ficou, assim, dividido em dois: uma parte oriental e outra, ocidental.
A parte oriental, cuja capital era Berlin, não se beneficiou dos programas de reconstrução oferecidos pelo Ocidente. A República Federal, em contraste com a Oriental, obteve  notável pujança econômico-financeira e altíssimo nível de vida. O fato despertou o desejo migratório para essa parte altamente industrializada e rica.
Com isso, e muitas vezes por razões políticas e ideológicas, os habitantes do Leste tentavam, aos milhares, "fugir" para o outro lado. Contudo, havia a proibição, quase absoluta, de deixar o país.
Começou, então, a imigração ilegal, mediante o cruzamento clandestino da fronteira entre as duas Alemanhas. Em apenas dez anos, haviam "escapado" pelo menos um milhão e meio de pessoas, o que representava, na época, 15% da população. Apenas nos primeiros meses de 1961 cruzaram a fronteira mais de 160.000 habitantes.
O fato criou verdadeira catástrofe demográfica, obrigando a que as autoridades orientais tipificassem como delito a saída sem permissão.
A par da proibição legal e tipificada como crime, o regime comunista edificou verdadeiros obstáculos físicos na fronteira: valas, alambrados, postos de observação, dispositivos de disparo automático, etc. Chegou-se ao máximo de ser construído, em 1961, o chamado e famoso "Muro de Berlin", isolando completamente os setores ocidentais da cidade do setor soviético e territórios sob soberania alemã oriental. Selou-se uma linha divisória entre os dois países, mesmo sendo, ambos, alemães.
Tais medidas contiveram parcialmente o êxodo. Todavia, documentos oficiais provam a morte de pelo menos setecentos alemães, tentando fugir. Até que, em, novembro de 1989 (por sorte e coincidência estava eu na cidade e guardo pequeno pedaço do Muro), ele caiu. E agora vem a parte jurídica. Os guardas, armados de sub-metralhadoras, tinham ordens de atirar. Essa Guarda, cujos soldados eram chamados "Mauerschützen" (atiradores do Muro), não tinha, porém, um dispositivo de lei que a obrigasse a disparar. Havia, apenas, ordens. Todos sabem que ordem ilegal não se cumpre.
Vindo a reunificação, instauraram-se procedimentos policiais-judiciais para apuração de possível responsabilidade penal daqueles que atiraram.
Dividiram-se os entendimentos expressados nas sentenças. Em rigor científico, não se tratava de cumprimento de dever legal, que é causa de exclusão da ilicitude. Havia, no entanto, ordem de superior hierárquico no plano estritamente militar, excludente da culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa.
Não existem ações penais condenatórias idênticas. O Órgão Judicial tem o dever de examinar caso a caso.
A opinião pública mundial inclinou-se a considerar "desculpável" a ação de jovens guardas
não profissionais, que apenas cumpriam o serviço militar obrigatório e tidos como menos experientes que um profissional.
Consideremos apenas um caso, por razões de espaço em sua página.
Na noite de dois de fevereiro de 1972, dois "Mauerschützen" perceberam que um cidadão tentava atravessar nadando o rio Spree, que separa as duas zonas da cidade. Deram-lhe voz de alto e efetuaram alguns disparos de advertência. Em vão. Aí, a quarenta metros de distância, dispararam seus fuzis automáticos contra o fugitivo. Uma bala colheu a cabeça do nadador, que acabou morrendo afogado. Os atiradores receberam prêmios e homenagens. Vinte anos depois foram condenados por homicídio pelo Tribunal de Berlin, com suspensão da execução da pena (Juristenzeitung, 1992, pp 691-696).
Existem também dezenas de decisões conhecidas, proferidas contra os mandantes.
Repetindo: havendo lei, é cumprimento de dever legal, excludente da ilicitude. Em casos de ordem de superior hierárquico pode haver, quando muito, uma "melhora" da responsabilidade penal.
Mesmo não sabendo se o assunto ainda comporta esse gênero de meditação que faço, envio-lhe o texto, com a amizade e a admiração de Cirilo Vargas.

* José Cirilo de Vargas é Professor da Escola de direito da UFMG e autor de diversos livros de direito penal. Nascido em Abaeté e Cidadão Honorário de Pompéu - MG.

 

5 comentários:

  1. A meu ver não é possivel determinar objetivamente um sim ou não como resposta. Afinal somente o encarregado de aplicação da lei no momento do fato sabera determinar se e legal, necessario e conveniente o uso da força na forma letal.

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  2. Certamente nós policiais, lidamos dioturnamente com a imprevisibilidade de uma mente desgovernada, então como a lei poderá prever a conduta adequada aos agentes ?
    Com certeza caberá a sabedoria ao aplicador da lei perceber excessos frente ao pricipio da proporcionalidade.

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  3. é sempre proveitoso lembrar o fato acontecido em uma delegacia de Policia do Estado de Goias, qundo um senhor completamente alcoolizado não representando em uma analise preliminar, o menor risco aos policiais de plantão, que de repente retirou de dentro de sua botina um canivete e conseguiu acertar a cabeça da escrivã, e a perna de um investigador , e o pulso de outro pois estavm todos tranquilos pois o senhor parecia bastante calmo.O resultado foi a morte da escrivâ e de um dos policiais que foi atingido na veia femoral falecendo por hemorragia.As situaçõe que a lei não prevê, estes são os grandes desafios da rotina de um policial.

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  4. Entre os objetivos do texto, um foi mostrar a diferença entre cumprimento de dever legal e obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico. No caso, inexistia lei impondo disparar, o que seria cumprimento de dever
    legal, excludente da ilicitude. Com a simples ordem do superior para abater o fugitivo, o fato é
    ilícito, pois ordem ilegal não se impõe à obediência. No lamentável caso de Goiás, o que existiu foi uma claríssima situação de defesa legítima, em que qualquer um estava autorizada a agir. Comentário do autor do texto.

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  5. Evidente que cada caso é diferente, cabendo ao órgão judicial apreciá-lo. No Brasil, jamais o juiz dirá, na sentença, que o fato é "legal". Poderá, no máximo, decidir ter sido praticado em situação justificante. Há grande distinção entre fato "legalizado" e fato "justificado". Atirar em
    pessoa em fuga sem emprego de violência não é legal, nem justificado nem desculpável. Quem age assim responde criminalmente. Cirilo Vargas.

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