Em importante entrevista veiculada na Revista Isto É, Ex-Secretário
Nacional de Segurança Pública e Especialista no tema aborda as
contradições do atual e desgastado modelo de segurança pública
brasileira, o formato de organização das Polícias e a polêmica da
desmilitarização requerida e reivindicada pelos movimentos sociais.
Nessa mesma reportagem ele também aborda temas destacados na PEC 51/2013
que altera o modelo das organizações Policiais, desmilitariza as PMs,
cria o ciclo completo e unifica as estruturas das duas corporações,
criando a Polícia Estadual.
Veja os detalhes na entrevista abaixo
Uma das maiores autoridades do País em segurança pública, o professor diz que a transição democrática precisa chegar à polícia
“A massa policial está insatisfeita. Mais de 70% daspolícias consideram o modelo atual equivocado”,
Doutor em antropologia, filosofia e ciências políticas, além de
professor e autor de 20 livros, Luiz Eduardo Soares é conhecido, mesmo,
por duas obras: “A Elite da Tropa 1 e 2”, que inspiraram dois dos
maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional: “Tropa de Elite 1 e
2”. Considerado um dos maiores especialistas brasileiros em segurança,
Soares, 59 anos, travou polêmicas em suas experiências na administração
pública. Foi coordenador estadual de Segurança, Justiça e Cidadania do
Rio de Janeiro entre 1999 e 2000, no governo Antony Garotinho, e
Secretário Nacional de Segurança do governo Lula, em 2003. Bateu de
frente com os dois e foi demitido. Nos últimos 15 anos, dedicou-se,
junto com outros cientistas sociais, à elaboração de um projeto para
modificar a arquitetura institucional da segurança pública brasileira,
que, no entender do professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj), passa necessariamente pela desmilitarização das polícias e o
fim da PM – como gritam manifestantes em passeatas. O trabalho virou a
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51, apresentada no Congresso
Nacional pelo senador Lindbergh Faria (PT-RJ).
"A PM vê o manifestante como inimigo. Para a grande massa, a
polícia tem um comportamento abusivo, violador, racista, brutal”
polícia tem um comportamento abusivo, violador, racista, brutal”
“A resistência de Geraldo Alckmin em enfrentar a brutalidade letal da
polícia está no coração da dinâmica terrível de ascensão do PCC"
polícia está no coração da dinâmica terrível de ascensão do PCC"
Istoé -
Por que o sr. defende a desmilitarização da polícia?
Luiz Eduardo Soares -
Porque já passou da hora de estender a transição democrática à
segurança pública. A Polícia Militar é mais do que uma herança da
ditadura, é a pata da ditadura plantada com suas garras no coração da
democracia. A polícia é uma instituição central para a democracia. E é
preciso que haja um projeto democrático de reforma das polícias
comprometido com o novo Brasil, com a nova etapa que a sociedade está
vivendo. O Brasil tem que acabar com as PMs.
Istoé -
Deixar de ser militar torna a polícia mais democrática?
Luiz Eduardo Soares -
A cultura militar é muito problemática para a democracia porque ela
traz consigo a ideia da guerra e do inimigo. A polícia, por definição,
não faz a guerra e não defende a soberania nacional. O novo modelo de
polícia tem que defender a cidadania e garantir direitos, impedindo que
haja violações às leis. Ao atender à cidadania, a polícia se torna
democrática.
Istoé -
Mas o comportamento da polícia seria diferente nas manifestações se a polícia não fosse militar?
Luiz Eduardo Soares -
Se a concepção policial não fosse a guerra, teríamos mais chances.
Assim como a PM vê o manifestante como inimigo, a população vê o braço
policial do Estado que lhe é mais próximo, porque está na esquina da sua
casa, como grande fonte de ameaça. Então, esse colapso da representação
política nas ruas não tem a ver apenas com corrupção política nem com
incompetência política ou falta de compromisso dos políticos e
autoridades com as grandes causas sociais. Tem a ver também com o
cinismo que impera lá na base da relação do Estado com a sociedade, que
se dá pelo policial uniformizado na esquina. É a face mais tangível do
Estado para a grande massa da população e, em geral, tem um
comportamento abusivo, violador, racista, preconceituoso, brutal.
Istoé -
Mas no confronto com traficantes, por exemplo, o policial se vê no meio de uma guerra, não é?
Luiz Eduardo Soares -
Correto. Mas esses combates bélicos correspondem a 1% das ações
policiais no Brasil. Não se pode organizar 99% de atividades para
atender a 1% das ações.
Istoé -
Como desmilitarizar uma instituição de 200 anos, como a PM do Rio?
Luiz Eduardo Soares -
Setenta por cento dos soldados, cabos, sargentos e subtenentes
querem a desmilitarização e a mudança de modelo. Entre os oficiais, o
placar é mais apertado: 54%. Mas a desmilitarização não é instantânea.
Precisa de um prazo que vai de cinco a seis anos e que depois pode se
estender. É um processo muito longo, que exige muita cautela, evitando
precipitações e preservando direitos.
Istoé -
Como poderia ser organizada uma nova polícia?
Luiz Eduardo Soares -
Os Estados é que vão decidir que tipos de polícia vão formar. A
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51 define dois critérios de
organização: territorial e de tipo criminal. Isso porque a realidade do
Brasil é muito diversa. O melhor modelo policial para o Amazonas não
precisa ser o do Rio. São realidades demográficas, sociológicas,
topográficas e geográficas distintas.
Istoé -
Como funcionaria o modelo territorial?
Luiz Eduardo Soares -
Seriam corporações com circunscrição dentro dos municípios, regiões
metropolitanas, distritos e o próprio Estado. Poderíamos ter polícia
municipal ou na capital, o Estado é que definirá. São Paulo, por
exemplo, tem tantas regiões distintas, com características diversas, que
poderia ter várias polícias. Essa seria uma possibilidade. Muitos
países têm polícias pequenas a partir de certas circunscrições. Então
poderíamos ter desde uma polícia só, porque a unificação das polícias é
possível, até várias dentro do mesmo Estado.
Istoé -
E o tipo criminal?
Luiz Eduardo Soares -
Teríamos uma polícia só para crime organizado, outra só para delitos
de pequeno potencial ofensivo. Mas todas são polícias de ciclo
completo, fazem investigação e trabalho ostensivo. Poderia ter polícia
esta-dual unificada para delitos mais graves, que não envolvam crime
organizado. E pode ter uma polícia pequena só para crime organizado,
como se fosse uma Polícia Federal do Estado. São muitas possibilidades.
Istoé -
Como fica a União?
Luiz Eduardo Soares -
Poderia ter atuação destacada na educação policial. No Rio, para
ingressar na UPP o policial é treinado em um mês. Em outros Estados, são
oito meses. O Brasil é uma babel. Tem algo errado. Tem que ter regras
básicas universais. Na polícia, a bagunça, a desordem e a
irresponsabilidade nacional, consagradas nesse modelo, são de tal ordem
que formamos policiais em um mês, que têm o mesmo título de outro
profissional formado em um ano. É necessário que haja um Conselho
Federal de Educação Policial, como existe Conselho Federal de Educação. E
o Conselho tinha que estar subordinado ao Ministério da Educação, não
no da Justiça.
Istoé -
Os policiais foram consultados sobre esses novos modelos?
Luiz Eduardo Soares -
Fiz uma pesquisa sobre opinião policial, junto com os cientistas
sociais Silvia Ramos e Marcos Rolim. Ouvimos 64.120 profissionais da
segurança pública no Brasil todo. Policiais, guardas municipais, agentes
penitenciários. A massa policial está insatisfeita, se sente alvo de
discriminação, de preconceito, recebe salários indignos, se sente
abusada, sente os direitos humanos desrespeitados. Mais de 70% de todas
as polícias consideram esse modelo policial completamente equivocado, um
obstáculo à eficiência. E os militares se sentem agredidos, humilhados,
maltratados pelos oficiais. Acham que os regimentos disciplinares são
inconstitucionais. Pode-se prender sem que haja direito à defesa, até
por um coturno sujo!
Istoé -
Mas isso não ajuda a manter a disciplina?
Luiz Eduardo Soares -
De jeito nenhum. Mesmo com toda essa arbitrariedade não se evita a
corrupção e a brutalidade. Estamos no pior dos mundos: policiais
maltratados, mal pagos, se sentindo desrespeitados, não funcionando bem.
E a população se sentindo mal com essa problemática toda. E os números
são absurdos: 50 mil homicídios dolosos por ano e, desses, em média,
apenas 8% de casos desvendados com sucesso. Ou seja: 92% dos crimes mais
graves não são nem sequer investigados.
Istoé -
É o país da impunidade?
Luiz Eduardo Soares -
Somente em relação ao homicídio doloso. Estamos longe de ser o país
da impunidade. O Brasil tem a quarta população carcerária do mundo.
Temos 550 mil presos, eram 140 mil em 1995.
Istoé -
O que mais é necessário para democratizar a segurança pública?
Luiz Eduardo Soares -
Precisamos de uma polícia de ciclo completo, que faça o
patrulhamento ostensivo e o trabalho investigativo. Hoje temos duas
polícias (civil e militar), e cada uma faz metade do serviço. Nosso
modelo policial é uma invenção brasileira que não deu certo. Até porque
quando você vai à rua só para prender no flagrante, talvez esteja
perdendo o mais importante. Pega o peixe pequeno e perde o tubarão. Tem
que ter integração. O policiamento ostensivo e a investigação se
complementam.
Istoé -
O que mais é importante?
Luiz Eduardo Soares -
É fundamental o estabelecimento de carreira única. Em qualquer
polícia do mundo, se você entra na porteira pode vir a comandar a
instituição, menos no Brasil. Hoje temos nas instituições estaduais
quatro polícias de verdade. Na PM são os praças e oficiais. Na civil,
delegados e agentes. São mundos à parte. Você nunca vai ascender, mesmo
que faça o melhor trabalho do mundo, sendo praça. Mas para quem entra na
Escola de Oficiais, o céu é o limite. Isso gera animosidades internas.
Isso separa, gera hostilidade. E esse modelo tem que acabar na polícia.
Isso é o pleito da massa policial.
Istoé -
O sr. foi secretário de Segurança e não fez as reformas. Por quê?
Luiz Eduardo Soares -
Por causa da camisa de força constitucional. Não podíamos mudar as
polícias. Mas dentro dos arranjos possíveis fizemos o projeto das
Delegacias Legais, que é uma das únicas políticas públicas do Brasil a
atravessar governos de adversários políticos. São 15 anos desse projeto,
apesar da resistência monstruosa que enfrentei. Fui demitido pelo
(Anthony) Garotinho porque entrei em confronto com a banda podre da
polícia. Após minha queda, policiais festejavam e o novo chefe de
polícia dizia: agora estamos livres para trabalhar. Foi uma explosão de
autos de resistência.
Istoé -
O crescimento do PCC se deve ao modelo policial vigente?
Luiz Eduardo Soares -
Acho que a resistência do governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) em
enfrentar a brutalidade letal da polícia, sua dificuldade em enfrentar a
banda podre, de confrontar a máquina de morte, com a bênção de setores
da Justiça e do Ministério Público, está no coração da dinâmica terrível
de ascensão do PCC. Durante os primeiros anos, o PCC foi um instrumento
de defesa dos presos, de organização que falava em nome da legalidade
que era desrespeitada pelo Estado. Depois se dissociou das finalidades
iniciais. Como já existia como máquina, poderia servir a outros
propósitos, inclusive criminais. E foi o que começou a acontecer. O PCC
deixou de ser instrumento de defesa para ser de ataque. Aí eles
começaram a funcionar como uma organização criminosa.
Fonte: Revista Isto É
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